Aos 71, devo tudo aos primeiros 7!
Publicado em 02/08/2023
TCAIAmar é aperfeiçoar. Quem ama aperfeiçoa. Podemos aprender sempre até o último segundo da vida, porém o que fazemos em um ser humano até 7 anos de idade irá decidir toda a sua vida.
A nossa primeira infância significa tudo ou nada de um sentido pelo qual valeu a pena existir e viver. Por isso ao completar 71 anos de vida quero dedicar esta mensagem a todos os pais, educadores, responsáveis e líderes pelas crianças deste planeta e os seres humanos deles originados: o valor da primeira infância.
Sou um laboratório dessa experiência. Não era para ter nascido, ao nascer não era para ter vivido, ao ter vivido era um exemplo pronto e perfeito para ser um sofrido, uma vítima do sofrimento da existência, onde o maior objetivo seria viver escondido.
Mas não foi assim. E não foi assim graças exclusivamente a minha 1ª infância. Foi dentro desses 7 anos iniciais que tudo aconteceu e parece que ali as escritas do destino foram indelevelmente marcadas. E não foram marcas ocultas simplesmente, as marcas foram feitas a fogo e inscritas num rosto marcado, eternamente marcado: queimado.
Na concepção e gestação uma mãe solteira é abandonada e à morte condenada pela gravidez indesejada. Foge de seu país grávida de 6 meses e tem seu filho em terras estranhas. Sozinha não consegue cuidar de si e da sua criança. Encontra um casal sem filhos que pela situação daquela mãe aceita ficar com a criança. A mãe parte para nunca mais voltar. Na casa nova, pobre, mas amado pelos novos pais, essa criança sofre uma fortíssima queimadura facial. Aos 3 anos de idade uma lata de cera fervente atinge seu rosto o deformando completamente. Salvo pela sorte, seguiu 3 anos de hospitais públicos e, ao completar 7 anos, esse menino sem rosto estava pronto para ir ao mundo, pois as lições essenciais e fundamentais de sua vida haviam sido instaladas na sua mente infantil a partir do portal do amor incondicional.
E aquele amor da mulher e do homem que o adotaram não foi de forma alguma para esconder as marcas do menino. Muito ao contrário, foi para transformar o seu rosto queimado, a sua mãe biológica abandonada, o seu pai biológico ignorado em força para viver com orgulho de ter nascido e fortes razões para se tornar um vencedor e nunca num vencido.
Três regras de ouro foram vitais para minha vitória, foi a vitória da minha criança, da minha primeira infância:
1 – Coragem: “filho não tenhas vergonha da tua cara, tenhas vergonha na cara”. Assim um português de “Trás os montes” me ensinava todos os dias. Me levava pra nadar no mar do José Menino em Santos. Eram 2 km eu e o meu amado, o maior amigo da minha vida, o Antônio, e ele sempre me deixava ganhar: “com a natação filho terás um bom pulmão e a cera quente que te feriu não prejudicará tua saúde”. E íamos aprender a saltar da rocha no mar. Ele explicava: “a única coisa que não podemos fazer numa rocha na beira do mar é esperar pela onda, precisamos saltar nela antes que ela salte sobre nós. Salta filho”. Assim na minha 1ª infância aprendi que precisamos saltar sobre a vida, antes que ela salte sobre nós. Este Antônio me proibia de pensar e agir como uma vítima.
2 – Admirar pessoas: Rosa e Antônio, meus pais adotivos, não eram perfeitos. Discutiam, Brigas de casal era coisa corriqueira. Um português de Trás os Montes com uma alemã do morro do Canastra, colônia alemã de Canela no Rio Grande do Sul. Porém, esses dois, que mal sabiam assinar o próprio nome, não eram nada fáceis, e tinham por mim um amor incondicional. Como disse, não um amor para me esconder, um amor envergonhado ou vitimizado, e sim um amor corajoso para me expor.
Na minha primeira infância eles me mostravam as coisas boas das pessoas do nosso bairro, da nossa rua. Era em Santos, ali na vila Belmiro com o Marapé. Eles tinham um olhar de admiração por ângulos dos vizinhos, dos conhecidos, e me faziam olhar isso. O seu Pontual, um engenheiro estudado. O seu Barsotti, um guarda livros de letras bonitas. A Dona Justina, mulher culta que me dava um livro todo mês para ler. O seu Santos, dono do posto de gasolina, mas que trabalhava até tarde junto com seus empregados. A dona Margarida que, além de cuidar de 5 filhos, trabalhava pra fora e ajudava o marido nas despesas da casa. O pai farmacêutico do meu amigo Shinyashiki. A dona Helena, nossa vizinha que ensinava violão e que me encantou com seus acordes. Havia um olhar de virtudes e valores nas pessoas da nossa vizinhança que eram para mim ressaltados. Eles me ensinaram a admirar o lado bom das pessoas. E de observar e procurar esse ângulo em todas as pessoas.
Foi na minha primeira infância que ficou instalado na minha inconsciência essa inteligência emocional que me foi determinante para todo meu futuro, e continua sendo. A importância do capital afetivo. Somos um “Lego humano” em construção permanente coletando peças, pedacinhos de muitos.
3 – O foco: “Presta atenção nas batatas”. Tudo seria fácil não fossem as dificuldades, claro, como o chargista gaúcho Barão de Itararé dizia: “Eu tinha medo do mundo”, mesmo com a força dos atos e do espírito dos meus pais adotivos, e dos meus vizinhos, da minha comunidade. E resistia para sair de casa. Minha mãe Rosa adorava me levar com ela onde quer que fosse. Eu comecei a não querer e me esconder. A feira livre do bairro era um lugar que eu temia. Ali os outros moleques, o bullying, o burburinho. E era comum as mães levarem os filhos para ajudar na feira.
Depois de escapar duas vezes daquela “quinta-feira tenebrosa” o dia da feira, acordei amarrado ao braço da minha mãe que me arrastou até a feira dizendo: “sua mãe está envergonhada pois as vizinhas dizem que não sei educar você, pois você é o único filho que não ajuda a mãe na feira, vai comigo sim”. E quando chegamos, na primeira barraca, a das batatas, ela calibrou o meu foco dizendo: “presta atenção nas batatas, pega uma a uma e não tira atenção do que você tem que fazer”. Rosa me protegeu do burburinho da feira, da curiosidade das pessoas que queriam ver o menino queimado e não tinham visto. Meu foco foi para as batatas, o alho, as cebolas, as laranjas, um sonho e um pastel. E quando cheguei em casa o pai abraçou a mãe e disseram: “parabéns, obrigado filho, ninguém vai dizer que não sabemos educar você”.
Muitas outras coisas aconteceram nessa primeira infância? Sim. Teve dores, vi adultos indiferentes, outros malévolos, outras crianças rindo do meu rosto, porém nada disso prevaleceu. Meus pais adotivos Rosa e Antônio, meus tios adotivos Irene e Joaquim, me educaram para a coragem, a admiração de pessoas e a prestar “atenção nas batatas”, quer dizer no que era importante a ser feito.
A 1ª infância transforma as cicatrizes em marcas de valor, sejam quais forem essas cicatrizes. Potenciais dores podem virar amores.
Ao chegar nos meus 71 agradeço aos meus primeiros 7. Agradeço aos meus vizinhos da Rua Princesa Izabel, 257, em Santos, a Portuguesa Santista, ao Santos F. C. Agradeço a escola municipal Olavo Bilac, à escolinha Nossa Senhora de Lourdes e a Santa Casa de Santos que foi boa parte do tempo onde estive nesses 7 primeiros anos.
E tive sorte? Sim. Minha mãe Beni, biológica, escolheu as melhores pessoas do mundo para me deixar. Agora, além da família, a comunidade é da mesma forma fundamental. Onde a família falha a boa comunidade salva.
Que tenhamos políticas públicas e conscientização da sociedade para o sagrado dever do cuidado da primeira infância. São naqueles 7 anos que desenhamos a essência dos próximos 71.
A coragem, o olhar para as pessoas e o mundo, o foco superando as distrações, deram certo, pois vieram embalados em amor incondicional. Transformaram uma lata de cera fervente num combustível de vida.
Feliz aniversário e viva a primeira infância!
José Luiz Tejon.